(…)
Agora Marta encontrava-se nos braços do seu marido. Depois da primeira noite de amor dos últimos longos meses, imperava o silêncio. João, como qualquer homem, dormia e ela, com a cabeça deitada no peito quente, prendia o olhar na escuridão daquele quarto antigo. Sentia-se amada por fora, mas caída por dentro, como se lhe sugassem a vida. Aliás, ia-se dando conta que nunca teve vida, vida feliz e completa no mínimo. Fora forçada a crescer demasiado depressa. «Bastas tu a ti mesma», ouvia ela. «Bastas tu a ti mesma», «Bastas tu…» e estes dizeres repetiam-se continuamente, ecoando em vazios sonoros intermináveis. Entre cada eco, vem-lhe à mente a figura materna, rígida e seca, com o cabelo preso numa daquelas redes finas e o semblante, também preso, sem notas de um sorriso reconfortante. Pelo contrário, o olhar da mãe sempre a fez sentir infeliz e elevada num patamar em que o erro não era possível e em que esse direito não lhe era permitido. Da figura do pai, não tinha memória, apenas uma ausência na qual nem pensava. E nem aquele abraço quente de João a fazia sentir-se mais preenchida. Até mesmo esse a fazia sentir-se sufocada; não que a asma desse cabo de si, mas o coração sentia-se apertado, como se alguém, na mais pura maldade, lhe enrolasse uma corda grossa e desse um nó.
Inadvertidamente, solta um soluço que faz João acordar. Os pensamentos desvanecem-se quando ele a olha fixamente mais uma vez. O olhar penetrante tenta percebê-la, encontrar um motivo, uma ocasião, mas por mais que tente só encontra incertezas e um olhar baço e triste.
«Queres falar?»
«Por mais que falasse, por mais que me esforçasse, não entenderias. Toda a minha vida resumiu-se a uma mentira» e enquanto fala, Marta desvia o olhar para aquela sabrina que ainda tem calçada no pé esquerdo, aquele que sente como o coração.
(Continua)
*photo://suzi9mm
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